O que significa ser uma criança encurralada?
Durante a última operação policial que ocorreu na região que compreende o complexo da Maré, sete pessoas foram mortas, incluindo o jovem Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, que estava a caminho da escola quando foi alvejado. Não foi um caso isolado. Operações dessa natureza ocorreram outras inúmeras vezes e deixaram perdas semelhantes. Diariamente centenas de moradores da Maré precisam lidar com a ineficiente política de segurança pública que os expõe ao risco físico e emocional. A política contra o tráfico aplicada pelo Estado nega, de forma sistemática, uma série de direitos constitucionais aos moradores, como o direito de ir e vir, à inviabilidade do lar e o direito à justiça. As famílias estão à mercê da própria sorte, à mira dos tiroteios e do descuido dos agentes do Estado, que deveriam estar a serviço para garantir a segurança da população local.
Com essa perspectiva em mente, onde estão as crianças quando ocorrem as operações policiais nas favelas? Estão em suas casas interagindo com as suas famílias, brincando pelas ruas, nas escolas ou simplesmente a caminho da casa de um parente ou da padaria. Não há hora certa para a ação policial, por isso, os moradores, incluindo as crianças e os jovens, ficam em situação de extrema vulnerabilidade.
Em contexto de violência urbana, a cidade perde a dimensão do acolhimento e, definitivamente, transforma o espaço público em espaço hostil para a população, especialmente para as crianças. Importante dialogarmos sobre o quanto a exposição frequente à violência urbana está sistematicamente afetando as vidas de nossas crianças. Difícil mensurar quais os impactos psicológicos e emocionais que afetam a juventude por conta do medo e da insegurança com os quais são obrigadas a conviver. Certamente o impacto é grande. As crianças devem ter acesso a um ambiente saudável e seguro para que não tenham o seu desenvolvimento psicoemocional e escolar prejudicado por traumas. Imaginemos as crianças deitadas pelo chão das salas de aula, enquanto as paredes de sua escola são atingidas por tiros, ou tendo as mochilas revistadas ou as suas casas invadidas violentamente sem mandado judicial. Atos explícitos de violência presenciados pelas crianças e jovens podem desencadear nelas estresse extremo.
As crianças têm as suas vidas impactadas quando as escolas suspendem as aulas ou mesmo quando precisam concentra-se em alguma atividade escolar enquanto escutam os estouros de um tiroteio. A sua trajetória educacional é prejudicada. E o direito à educação é um direito humano fundamental, garantido pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse é apenas mais um direito negligenciado à essa juventude.
O fato de que crianças e adolescentes precisem, frequentemente, permanecer em suas casas para não correrem o risco de serem atingidos por uma bala perdida, também fere outro direito fundamental, o direto à vida e à liberdade (ECA: Art. 7º – A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência e Art. 15º – A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis).
Além disso, é fundamental ressaltar que viver a cidade e ocupar o espaço público é importante para o desenvolvimento humano. Afinal, a cidade também pertence às crianças. A rua, assim como a casa, deveria ser espaço para a brincadeira, para a interação e o aprendizado. E o Estatuto da Criança e do Adolescente garante o direito ao lazer e à diversão.
A favela é espaço de moradia e convivência para milhares de famílias comuns, como em qualquer outra parte da cidade. Famílias que trabalham, educam seus filhos e pagam as suas contas. Mas, diferente de outras partes da cidade, os moradores da favela não têm o direito à segurança efetivamente garantido. É fato que em várias áreas periféricas da cidade, muito frequentemente, milícias e facções ocupam o espaço público e oprimem a população local. No entanto, o Poder Público, único respaldado para garantir a segurança e o bem estar da população, deveria caminhar em direção oposta e não ser mais um agente de opressão para a população local, assumindo diferentes estratégias de interação com a comunidade. Uma interação que não a destrua.