Evento no Museu do Amanhã discutiu a importância da conservação do Cerrado para o futuro do Brasil
Na última terça (9), o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, transformou-se numa extensão da savana mais rica em biodiversidade do mundo, o Cerrado. Reunindo representantes de povos tradicionais, o evento “O Cerrado em toda parte”, realizado pela ActionAid em parceria com a Rede Cerrado e o Museu do Amanhã, discutiu a importância da conservação do bioma pela perspectiva da proteção da sabedoria ancestral das populações que habitam esse território.
No evento, o público pôde se aproximar do que significa viver nessa região, experimentando sua cultura e história, sobretudo pelos relatos das populações que continuam resistindo e afirmando seus modos de vida tradicionais como guardiãs dos recursos naturais.
Atualmente, o Cerrado é o principal território por onde avança o agronegócio no país, sendo devastado mais rápido que a Amazônia. Se o atual ritmo de devastação for mantido, o bioma pode desaparecer até 2030. Ele é conhecido como o berço das águas, pois é nesta região onde nascem as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata.
Avanildo Duque, gestor de Programas e Políticas da ActionAid, resume a importância da realização do evento para o futuro do país: “O amanhã depende de protegermos ao máximo a biodiversidade do Cerrado. Garantir a permanência dessas populações em seus territórios é a forma mais efetiva para barrar o avanço do desmatamento e a manutenção da vegetação e da água”, disse.
Ouvir o Cerrado
Durante a manhã, o palco do auditório principal foi ocupado por representantes dos povos quilombolas, das quebradeiras de coco babaçu e dos geraizeiros (identidade tradicional da região das Gerais, no Norte de Minas) que, mediados pela jornalista Flavia Oliveira, dialogaram sobre as resistências necessárias frente ao crescimento da exploração do bioma.
Segundo Fátima Batista Barros, da Articulação Nacional dos Quilombolas e integrante da Campanha em Defesa do Cerrado, a relação que os quilombolas têm com o Cerrado é de pertencimento, diferentemente do modelo de exploração predatória comercial que cresce na região.
“Nós levamos anos em processos lutando para provar o nosso direito ancestral que temos de estar no território. Meu avô, minha mãe, meus irmãos nasceram na Ilha de São Vicente e ainda assim enfrentamos um processo jurídico e um fazendeiro conseguiu retirar a comunidade uma vez. Mas nós abrimos um processo para comprovar nossa ancestralidade”, explicou.
O processo obteve uma primeira vitória recente. Em 20 de setembro de 2018, foi publicada no Diário Oficial a portaria Nº9.509 que destina 100% da terra da Ilha de São Vicente para a titulação do território quilombola.
Maria do Socorro, coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e coordenadora geral da Rede Cerrado, lembrou que quem de fato está conservando as águas do Cerrado são justamente as comunidades ameaçadas. E ela afirmou que uma forma de ajudar essas comunidades é “colocando a agroecologia na sacola, que não usa veneno, não desmata. Vamos incentivar o nosso povo a comprar esses produtos”, disse ela.
Samuel Leite Caetano, representante dos povos geraizeiros e coordenador de projeto do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM) que integra a Rede Cerrado, vive desde cedo a resistência pela conservação do bioma. “O Cerrado nos ensina. Às vezes ele desaparece para soja, pecuária, eucalipto, mas basta retirar essa forma agressiva de intervenção do bioma que ele ressurge. É extremamente resistente, como os povos que ali habitam.”
Ele afirma que a agricultura desenvolvida pelos povos tradicionais do Cerrado é um processo em equilíbrio com a natureza e que a luta dos geraizeiros é para reverter o processo de degradação do território. “Eu não estou desanimado, estou igual ao Cerrado, disposto a ressurgir quando for preciso. Tenho certeza de que essa resiliência vai garantir bons frutos.”
Os grandes conflitos agrários que acontecem na região do Cerrado, principalmente na área conhecida como MATOPIBA, são ameaças para diferentes povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Mas também ameaçam as águas do Cerrado, contaminando-as com agrotóxico, ou esgotando seus riachos e rios com outorgas de água para as grandes áreas de monocultura sem devido estudo de impacto ambiental.
Maria Emília Pacheco, assessora da Fase, reafirmou a importância de levar ao debate um bioma tão importante e pouco conhecido como o Cerrado, que vem sendo mais devastado do que a Amazônia, porém não recebe a mesma atenção no debate público. “A vida no Brasil depende muito da vida no Cerrado. Falar do Cerrado é também falar sobre o ciclo das águas e sua biodiversidade, mas, sobretudo, falar sobre a história de seus povos, já que eles não somente guardam a natureza, mas transformam em permanência a própria natureza.”
Ela lembrou da importância de questionarmos o discurso vigente que fala que o agronegócio nos alimenta. “Há um território do capital, imposto e criado pelo interesse do Estado, como o MATOPIBA, que alega que o desenvolvimento se dá com aumento da produção, mas produção para quem? Devemos questionar: quem nos alimentará?”, explicou se referindo ao fato de as grandes monoculturas que ocupam áreas que antes eram mata nativa do Cerrado serem, em sua imensa maioria, soja ou milho transgênico, que são exportados para a cadeia da pecuária em países da Europa, Estados Unidos e China. Em alguns casos, as áreas de Cerrado viram plantações de eucalipto ou pastagem para criação de gado.
A jornalista Flávia Oliveira, que mediou o debate, lembrou que para esses povos e comunidades, incluindo agricultores familiares, o desenvolvimento é um conceito diferente. “O ofício, o trabalho e a renda, passam pelo conhecimento e saberes que compõem o Cerrado e toda essa riqueza histórica e antropológica”, disse.
Ao final da roda de conversa, o público acompanhou uma homenagem a dona Dijé, quebradeira de coco babaçu, uma importante liderança no movimento falecida em setembro após tomar posse no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais. As Encantadeiras, grupo musical das quebradeiras de coco babaçu, cantaram músicas sobre seu modo de vida e pela defesa dos babaçuais para encerrar a atividade.
Ver o Cerrado
Durante o período da tarde, foram exibidos o curta metragem Seu Churrasco tem soja?, de Thomas Bauer; a série para a web Guardiões do Cerrado, de Fábio Erdos; e o longa Sertão Velho Cerrado, de André D’Elia. Após a exibição, os diretores participaram de um debate com o público e relataram as dificuldades no processo de produção, principalmente nos casos em que envolviam violência sofridas pelas comunidades com o avanço de monoculturas.
Sentir o Cerrado
Durante todo o dia, as crianças puderam participar de atividades pedagógicas, incluindo exposição científica, contação de histórias e oficinas. Os especialistas do Museu de Mineralogia Aitiara (MuMA) apresentaram a formação do aquífero Guarani, uma das reservas hídricas mais importantes do mundo localizada no Cerrado, e demonstraram o funcionamento do arenito Botucatu, rocha porosa do aquífero que absorve água.
A artista plástica Márcia Porto conduziu oficinas de pintura coletiva com pigmentos terrosos a partir de informações sobre o Cerrado. Ao final da oficina, os participantes montaram um painel com suas pinturas. E as Encantadeiras, grupo musical de quebradeiras de coco babaçu, fizeram uma apresentação sobre sua defesa das palmeiras que só crescem na região do Cerrado, e seu canto de trabalho na quebra do coco da palmeira, seu meio de vida.
Crianças do projeto em parceria da Redes de Desenvolvimento da Maré com a ActionAid acompanharam as atividades e visitaram o Museu. Ana Carolina, 14, e Vitória Francisca, 13, ambas moradoras da Maré, e apadrinhadas por doadores da ActionAid, acompanharam atentas as atividades pedagógicas. Puderam conhecer um pouco mais sobre a formação das águas, sentir as cores do Cerrado e experimentar um pouco das culturas que resistem no bioma. “A gente não conhecia essa realidade. As histórias das quebradeiras de coco, para nós, foi o mais interessante porque elas mostraram para a gente como elas vivem”, disse Ana Carolina, apoiada pela amiga Vitória.
Saborear o Cerrado
Ao longo de todo o dia, os visitantes puderam comprar produtos agroecológicos da Central do Cerrado, uma cooperativa que comercializa a produção dos povos tradicionais. São castanhas, óleos, sabonetes, geleias, méis, licores, patês, artesanato de espécies nativas como baru, pequi, jatobá, babaçu, entre outros.
Sabia que você também pode ajudar a proteger o Cerrado? Assine a petição pública pela transformar o Cerrado e a Caatinga em Patrimônio Nacional e saiba mais sobre a Campanha Nacional de Defesa do Cerrado.