Comida de verdade ou ração?
O Brasil se notabilizou nos últimos anos pelos avanços que conseguiu realizar no combate à fome e à desnutrição. Políticas públicas de reconhecida efetividade foram decisivas para estas conquistas, mas elas não teriam ocorrido se grande parte da sociedade brasileira não se mobilizasse e se organizasse para essas conquistas. Foram criados conselhos desde os locais mais remotos até o de âmbito nacional, com forte influência nessas políticas. Foram também realizadas conferências para definirem diretrizes na perspectiva do direito humano à alimentação adequada e saudável, reunindo muitos milhares de delegados representantes de seus locais de moradia e de grupos populacionais. A V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada no final de 2015, teve como lema os dizeres: “Comida de Verdade, no campo e na cidade”.
Paradoxalmente, nas últimas semanas, veio à tona um debate que confronta visões radicalmente distintas sobre qual alimento o poder público deve oferecer àqueles com maior vulnerabilidade socioeconômica. Isto porque a prefeitura de São Paulo anunciou a distribuição de alimentos reprocessados, por ela denominado como “granulado nutricional” para famílias com carências alimentares. A matéria prima seria de alimentos com data próxima do fim de sua validade e sem possibilidades de aceitação no comércio. Foi também anunciada a parceria com a empresa Plataforma Sinergia, que forneceria esses alimentos, recebendo em troca grandes benefícios. Depois desse anúncio, a prefeitura detalhou que essa ração alimentar será distribuída nas escolas, como merenda escolar, e à população em situação de rua.
Em que se diferenciam essas visões, se ambos declaram querer contribuir para o enfrentamento da fome e desnutrição? Em tudo. A concepção da “comida de verdade”, construída ao longo de muitos anos baseia-se em primeiro lugar na ideia de que o alimento é um direito de todos como, aliás, está inscrito no artigo 6º da Constituição Federal. E na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (11.346-2006) está dito em seu artigo 2º que a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e em seu artigo 4º que devem ser respeitadas as múltiplas características culturais do país. Na Lei da Alimentação Escolar (11.947-2009), em seu artigo 2º, coloca-se como diretriz o emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis. A prefeitura de São Paulo entende a alimentação de forma bastante diferente, afinada com o pensamento do atual prefeito, que quando comandava um reality-show em 2011, em canal de televisão, perguntou a um dos participantes do programa: “Você acha que gente pobre, gente humilde, gente miserável, que lamentavelmente está nas ruas de São Paulo, vai ter hábito alimentar? (…) Se ele se alimentar, ele tem que dizer ‘Graças a Deus’ (…) Que perda de tempo! ”.
Alimentação como direito, alimentação com dignidade. Essa deve ser a premissa fundamental a reger qualquer esforço no enfrentamento da fome. Diferente disso, qualquer outra fórmula, além de violar as leis vigentes, separa os seres humanos em categorias dos que podem ter acesso a comida de verdade e àqueles que devem se contentar com ração.