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ActionAid traça perfil das desigualdades de gênero e de raça no Brasil em novo relatório
ActionAid traça perfil das desigualdades de gênero e de raça no Brasil em novo relatório
Um novo estudo publicado pela ActionAid propõe um raio-x das desigualdades de gênero e de raça, e evidencia de que maneiras o racismo e o machismo estruturais prejudicam, principalmente, mulheres negras no Brasil. Parte do projeto “Agenda 2030 no Brasil: difusão e promoção dos ODSs 1 e 2”, o relatório “Reconhecer para erradicar: o impacto das desigualdades de gênero e raça na manutenção de vulnerabilidades” consolida múltiplos dados publicados nos últimos anos sobre renda, emprego, ensino, alimentação, e muitos outros temas. E vai além: apresenta desdobramentos que evidenciam a urgência de um olhar mais aprofundado e específico.
O estudo denuncia, logo no início, que há uma gigante lacuna na coleta de dados desagregados por gênero e por raça nas zonas rurais e em pequenos municípios. Essa falta, por si só, acende um alerta para questões invisibilizadas, como a violência doméstica, a realidade do trabalho doméstico e a dimensão do trabalho informal. Representantes de organizações parceiras da ActionAid em 12 estados brasileiros falam sobre suas experiências, e deixam evidentes algumas dessas situações vislumbradas na análise dos dados.
Ana Paula Brandão, diretora de Políticas e Programas da ActionAid, aponta que, historicamente, os indicadores nos mostram que a pobreza e a extrema pobreza têm recorte de gênero e de raça, sendo as mulheres negras as mais atingidas.
O desmonte de políticas públicas de assistência social, em curso, e o aprofundamento da crise econômica durante a pandemia deixaram ainda mais à margem as mulheres negras. Os relatos são assustadores: fome, miséria, desemprego, doença e morte; saúde mental profundamente afetada; vacinação lenta e seletiva; entre outros. Por isso mesmo, se dá a importância deste documento. É preciso reconhecer para erradicar tantas injustiças e reverter os efeitos trágicos de inúmeros retrocessos.
Segundo a PNAD, com dados organizados pelo IPEA, 24,8% da população estava em condição de pobreza monetária e 6,6% em extrema pobreza em 2019 – números que eram menores em 2014: 22,8% e 4,5%, respectivamente. O percentual de pretos ou pardos mais que duplica em comparação com brancos no indicador de pobreza, e é 2,6 vezes maior na extrema pobreza.
Um estudo de 2021 do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (MADE/ USP) observou esses indicativos em diferentes fases do Auxílio Emergencial, e em todos os cenários, mulheres negras são as que mais sofrem com a pobreza e a extrema pobreza – na fase em que o benefício foi suspenso, de janeiro a março de 2021, 41% delas estava em situação de pobreza, e 14,6% em extrema pobreza.
Um dos relatos, de uma representante de organização social rural da Zona da Mata mineira (os nomes foram mantidos em sigilo por segurança), destaca o aumento do desemprego e da fome:
Estamos na Zona da Mata mineira, com maioria da população negra. A maior parte das famílias impactadas é formada por pessoas negras. São muitas mães solo com três ou quatro filhos, que vivem com auxílio do município. Muita coisa está suspensa. Há acúmulo do trabalho doméstico, especialmente com a suspensão das aulas das crianças. O trabalho dobrou.
A desigualdade se consolida pelas diferenças de renda: o rendimento principal dos homens brancos é 129% maior que o de mulheres pretas ou pardas, segundo o IBGE. O Boletim Mulheres no Mercado de Trabalho, da Faculdade de Campinas, constatou que, na pandemia, mulheres negras tiveram um rendimento médio 2,23 vezes menor que o de homens brancos, ou o equivalente a 64,5% do rendimento médio no Brasil. E é preciso levar em conta o trabalho sem remuneração. Antes da pandemia, mulheres negras dedicaram 22 horas semanais a cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, enquanto homens da cor branca usaram 10,9 horas da semana para essas atividades – os dados são da PNAD-C.
No quarto trimestre de 2020, segundo dados do IBGE, das 13,9 milhões de pessoas desempregadas, 53% eram mulheres e 47% homens. Entre os muitos dados referentes ao desemprego, é notável que o sexo feminino está posto em situação mais vulnerável. Elas eram 54,5% das pessoas subocupadas – que gostariam de trabalhar por mais horas, mas não conseguem. Entre as pessoas que estão desempregadas e que desistiram de procurar emprego, mais uma vez, elas correspondiam a 55,7%. O percentual é ainda maior no caso de pessoas que não tinham possibilidade de procurar emprego naquele período – elas eram 65,4%.
O estudo destaca que as diversas situações de desigualdade no mercado de trabalho estão ligadas aos níveis de escolaridade e, consequentemente, aos tipos de atividade profissional que são acessados pelos diferentes grupos. Dados da PNAD-C do segundo trimestre de 2019 revelam que 32% das pessoas brancas estavam sem instrução e com ensino fundamental incompleto. Esse dado é maior para pessoas pretas ou pardas: 44%.
Um ofício que, historicamente, é acessado pelas mulheres negras é o trabalho doméstico. Em 2019, eram 5,8 milhões de trabalhadoras, contra 4,2 milhões em 2020 — 1,1 milhão com carteira assinada e 3,1 milhões sem carteira. Uma liderança do sindicato de trabalhadoras domésticas na Bahia traça um panorama da categoria no estado, e fala sobre as denúncias que vem recebendo nesses últimos meses, durante a pandemia de Covid-19.
Há 400 mil trabalhadoras domésticas na Bahia, cerca de 168 mil estão desempregadas. Muitas em situação análoga ao trabalho escravo: jornadas ininterruptas, sem direito a hora extra, adicional noturno, sem poder voltar para casa. Encaminhamos denúncias, e 27 casos foram confirmados. Há muito retrocesso nos direitos das trabalhadoras domésticas. Muitas trabalhadoras estão sendo induzidas pelo empregador a pedir demissão, sem direito ao FGTS e ao seguro-desemprego. E só existe uma vara da Justiça de Trabalho funcionando.
Acesso a renda, a emprego e a educação certamente determinam ou não a situação de pobreza. No entanto, o relatório aponta outros aspectos, como o acesso aos serviços públicos e a moradia. Segundo a PNAD-C de 2019, 26,5% de pessoas pretas ou pardas moram de maneira inadequada – seja com ausência de banheiro exclusivo na residência, pessoas em excesso no mesmo espaço ou ausência de documentos que comprovem a propriedade. O percentual é o dobro do que ocorre com pessoas brancas.
As pesquisas realizadas no Brasil sobre segurança alimentar, como a divulgada este ano pela Rede PENSSAN em parceria com ActionAid, apontam na mesma direção. Pretos e pardos encontram-se, muito mais acentuadamente, em insegurança alimentar moderada e grave. Viviana Santiago, do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, complementa:
A fome tem cara preta de mulher, e isso na continuidade de uma condição de vulnerabilidade que remonta à escravidão e que ainda não foi corrigida, nem pela abolição, nem agora. As mulheres negras são aquelas em maior vulnerabilidade.
Diante do cenário tão crítico, a diretora de Políticas e Programas da ActionAid reforça:
Há muito o que se fazer. Temos potência e devemos usá-la para a rápida reconstrução do tecido social, profundamente impactado pelas sucessivas violências a que estamos expostas. As mulheres, estas mesmas que são as mais impactadas, serão, sem dúvida, a solução para a virada: somos potência e resistência, e temos visto isso no dia a dia do trabalho da ActionAid.
Além do relatório, o projeto também produziu uma série de vídeos de animação, “Mulheres negras em ação contra a fome”, criadas a partir das experiências das mulheres ouvidas no relatório. Os dois episódios – também produzidos por mulheres negras do audiovisual – trazem as personagens Taís e Nena. Elas apresentam de forma lúdica as desigualdades apontadas no relatório, relacionando as histórias das personagens a dados sobre pobreza, fome e desemprego, chamando a atenção para os compromissos, que não estão sendo cumpridos pelo governo brasileiro, de atender aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
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