Mão na Massa: a solidariedade viabiliza a luta
Em terra seca, chuva é dádiva. E foi sob ela que os participantes da sexta edição do Mão na Massa encerraram a visita realizada em novembro deste ano ao povo indígena Xakriabá, no norte de Minas Gerais, região castigada atualmente por uma estiagem que já dura quatro anos. O encontro entre 11 doadores da ActionAid e a comunidade apoiada pela organização em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa (CAA) apresentou aos visitantes a história de resistência dos Xakriabás à seca, à disputa territorial e à ameaça de esquecimento da sua cultura. Bastaram dois dias em solo semiárido, palco da luta indígena, para fazer todo o grupo perceber o verdadeiro significado das grossas gotas d’água que caíram na hora da despedida.
Vir aqui me proporcionou uma reforma íntima. Embarquei nesta viagem querendo ajudar vocês, mas foram vocês que promoveram a nossa mudança. Vocês agregaram muito mais em nossas vidas.
– agradeceu a doadora Camila Maciel, engenheira baiana que vive no Rio de Janeiro.
Horas antes, Camila e o restante do grupo de doadores haviam terminado a obra da casa de sementes comunitárias da aldeia Vargens. O espaço vai ser usado por mais de 300 pessoas e faz parte de um projeto nacional de preservação de sementes nativas, cuja memória genética corre o risco de se perder, devido ao incentivo da indústria ao uso de sementes artificialmente modificadas. A preservação dos tipos nativos é uma estratégia para fortalecer o combate à fome nas áreas rurais, uma vez que eles são mais apropriados ao plantio em suas regiões de origem. Para deixar o espaço pronto para o uso da comunidade, os doadores fizeram um caminho de brita entre a casa e o banheiro externo, ajudaram a estocar sementes de milho e feijão e finalizaram a estrutura necessária para que o espaço também seja usado para o beneficiamento de frutas nativas que serão comercializadas, o que vai gerar renda para os moradores.
A finalização da obra pelos doadores é considerada uma atividade simbólica na visita do Mão na Massa, pois representa a concretização de um esforço contínuo de doação mensal que viabiliza os projetos locais apoiados pela ActionAid. Por isso, a viagem teve no roteiro, além de uma parte turística, uma programação que permitiu aos participantes ter uma visão ampla de todo o trabalho realizado junto aos Xakriabás. Na chegada, um dia antes, cerca de 50 indígenas receberam o grupo com cantos e danças de boas-vindas na língua akwen. Mesmo sem saber o significado exato das palavras cantadas, os visitantes logo entenderam que as músicas expressavam a força da história daqueles indígenas, que foi contada logo em seguida pelo líder local Hilário Xakriabá.
O povo Xakriabá soma hoje aproximadamente 10 mil pessoas. Com suas terras inicialmente delimitadas entre os rios São Francisco e Peruaçu, as disputas territoriais que permearam a história da colonização brasileira não pouparam os Xakriabás. Os anos 1970 marcaram o auge dos conflitos com fazendeiros, uma briga que culminou com o assassinato do cacique Rosalino Gomes e mais dois parentes numa emboscada enquanto a família dormia.
Logo após a morte do cacique, o governo indenizou fazendeiros que estavam em terras já reconhecidamente dos Xakriabás, o que não chegou um terço do reivindicado pelos indígenas. Hoje, eles avançaram a 50% de demarcação do que alegam ser território Xakriabá. E pedem a revisão dos limites:
Nós perdemos o acesso ao rio São Francisco, então não temos como pescar. Também não temos como caçar, já que uma grande área do território foi desmatada. Nossa opção é plantar, precisamos de território para fazer a roça”, justificou Hilário, que completou: “Hoje, o que mudou foi a forma de nos atacar. Não fazem mais emboscadas, mas as ameaças vêm de cima, principalmente a PEC 215, que quer rasgar a nossa constituição, conquistada com suor e sangue. O índio não ataca, defende. O índio não quer tomar a terra de ninguém, só quer reocupar o que lhe pertence. A terra, pra gente, é sagrada. A terra é nossa mãe. E mãe não se troca, não se vende.
A morte do cacique Rosalino foi lembrada por todas as lideranças que conversaram com os doadores ao longo dos dois dias de visita. Mas o resgate da memória dos Xakriabás vai além de lembranças dolorosas. As escolas públicas de Ensino Médio e Fundamental localizadas em território indígena têm disciplinas de cultura para passar às novas gerações as tradições que residem em danças, cantos, ritos, língua, artesanatos e pinturas corporais. Os Xakriabás passaram por um forte processo de miscigenação. No entanto, muito além de olhos puxados e cabelos lisos e pretos, é pelo modo de vida que eles se diferenciam.
Não andamos mais nus, não dormimos em ocas, perdemos o direito à nossa língua materna e temos igrejas nas nossas comunidades. Quando éramos diferentes, deslegitimavam a nossa luta dizendo que éramos bicho, não tínhamos alma, não éramos gente. Agora dizem que não temos direito porque somos iguais. O que é ser igual? E o nosso modo de vida?.
A visita dos doadores incluiu também uma ida à casa de medicina da aldeia Barreiro Preto, que guarda um estoque de remédios naturais feitos pelos próprios índios, e a uma escola indígena, onde o processo de formação extrapola o currículo formal. Célia Xakriabá, filha de Hilário, trabalha hoje na Superintendência de Modalidades e Temáticas Especiais de Ensino da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. Os Xakriabás querem garantir o direito de ter professores indígenas lecionando nas aldeias. O processo de formação acontece no curso de Educação Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais, que graduou a primeira turma em 2013. Hoje, há 54 Xakriabás matriculados.
Manoel de Oliveira Silva Xakriabá, de 22 anos, é um deles. O estudante se divide entre os períodos de aula em Belo Horizonte, a aproximadamente 680 Km de distância da aldeia, e temporadas na comunidade, onde tem experiência prática como professor de cultura.
Muitos jovens saíam das aldeias e iam tentar a vida em outros lugares, ficando marginalizados nas cidades. Agora, temos a possibilidade de ficar aqui e lecionar para a própria comunidade.
O resultado do esforço de resgate da cultura indígena pôde ser conferido pelos participantes do Mão na Massa numa grande celebração na casa de cultura da aldeia Sumaré I, que encerrou o primeiro dia de visita aos Xakriabás. Num espaço amplo, de estrutura arredondada e chão de terra batida, um grupo de quase cem índios cantou e dançou em roda durante horas, sempre convidando os doadores a se misturarem e festejarem com eles.
Na opinião do pajé Vicente, a celebração conjunta e a troca de experiências entre anfitriões e visitantes naqueles dois dias representou uma união mais ampla, em torno da defesa dos direitos indígenas:
A parceria de vocês conosco, por meio da ActionAid e do CAA, nos faz parentes. Todo mundo que vem nos ajudar é nosso irmão.
Numa terra seca de água e de direitos, a solidariedade viabiliza a luta, a resistência e a agricultura, que põe comida na mesa e gera renda para quem consegue vender o excedente. Ver de perto que se pode fazer parte disso emocionou.
Os dias aqui foram fantásticos, pela receptividade, pelos cantos, pelas festas, pela alegria das crianças. Foi muito emocionante ter contato com a cultura de vocês. Quero ter a oportunidade de aprender mais”, disse a doadora Rosilane de Aquino Silva, de Brasília, que desta vez embarcou em seu terceiro Mão na Massa. O sentimento é de gratidão.