PEC 215 pode agravar problema da fome entre populações indígenas, alerta consultor da ActionAid
Apesar de o Brasil ter deixado o mapa da fome da ONU em 2014, aproximadamente 12 milhões de pessoas ainda sofrem com o problema no país, um número estatisticamente considerado residual, mas equivalente às populações de países como Bolívia e Bélgica. Promover o acesso desses brasileiros aos alimentos, evitar retrocessos – diante de um contexto de crise econômica e ajuste fiscal –, e melhorar a qualidade da alimentação para mais 150 milhões de cidadãos que hoje têm comida à mesa garantida são desafios que se colocam diante do Brasil e que serão discutidos durante a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que acontece esta semana em Brasília.
“Na medida em que houve progressos para garantir o acesso de populações em condições vulneráveis aos alimentos, com exceção dos indígenas, que ainda vivem numa situação muita precária, o tema da segurança alimentar avançou para o tema da alimentação saudável e adequada”, afirma Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e consultor da ActionAid e do Ibase.
Menezes ressalta que um fator importante para manter os indígenas entre as populações ainda vulneráveis à fome no Brasil são os conflitos fundiários, que correm o risco de ser agravados, caso seja aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere a decisão final sobre demarcação de terras indígenas do Ministério da Justiça para o Congresso Nacional. Na última semana, a comissão especial destinada a analisar o tema deu seu aval à medida, que agora será votada em plenário.
“Os índices de desnutrição infantil são muito elevados entre os indígenas”, alerta.
Também durante a Conferência, Menezes lança o livro “Abastecimento alimentar e compras governamentais no Brasil: um resgate histórico”, publicação assinada em parceria com outros dois autores e que propõe uma reflexão sobre a importância do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), considerados por diversos especialistas como fundamentais no caminho que conduziu o Brasil para fora do mapa da fome da ONU. A experiência brasileira, inclusive, tem inspirado outros países nas Américas e na África, como Guatemala, Equador e Cabo Verde.
Quais são as principais demandas hoje em termos de segurança alimentar no Brasil?
Na medida em que houve progressos para garantir o acesso de populações em condições vulneráveis aos alimentos, com exceção dos indígenas, que ainda vivem numa situação muita precária, o tema da segurança alimentar avançou para o tema da alimentação saudável e adequada. Não é menos importante e grave o problema do crescimento da obesidade e do sobrepeso. Também não é menos importante a questão da contaminação dos alimentos por agrotóxicos. Tanto num caso, como no outro, as populações mais pobres são as mais vitimadas, pois elas têm menos condições de se defender. Neste sentido, a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional estará muito focada no que podemos chamar, simplificando as coisas, de comer bem. E discutirá as políticas que podem levar a uma melhoria dessas condições. Ao mesmo tempo, vivemos um contexto de ajuste recessivo que ameaça as políticas públicas com cortes orçamentários. Acredito que a Conferência também vá se posicionar sobre isso, assim como faço votos de que ela discuta a conjuntura nacional, que é muito grave e ameaçadora.
Que tipo de ameaças o ajuste representa em termos de segurança alimentar?
Em primeiro lugar, ele traz riscos de cortes orçamentários. Na educação e na saúde, por exemplo, os cortes foram muito pesados. Até agora, foi possível preservar as políticas públicas de segurança alimentar, mas isso não significa que elas não estejam ameaçadas porque, na minha avaliação, o caminho do ajuste não está dando certo. Ele está gerando uma queda de receita e agravando uma crise econômica que talvez não fosse tão grave quando ele começou. O ajuste está criando novas situações que podem tornar a conjuntura muito grave. Então, a ameaça está dada no sentido do aprofundamento da crise econômica. Por outro lado, se nos últimos anos houve uma superação do problema do acesso aos alimentos por parte da população mais pobre, isso se deu, em grande medida, por causa da melhora na renda. Se o desemprego voltar a crescer e houver redução de renda, esses problemas podem voltar. Por isso, a segurança alimentar não é uma ilha a centenas de milhas do restante das questões políticas. Temos que estar atentos porque ela pode ser atingida.
Por que as populações indígenas continuam numa situação de grande vulnerabilidade?
Existe uma causa estrutural sobre a qual não se mexe e, mais do que isso, se agrava a cada dia, que é a tomada das terras indígenas pelo agronegócio, sobretudo para produção de soja. Ultimamente também tem acontecido, em algum nível, com a produção de cana. A situação mais grave é no Centro-Oeste do país, com o exemplo mais recente nas disputas pelas terras dos Guarani-Kaiowá, que estiveram perto de serem despejados de suas próprias terras no Mato Grosso do Sul, em outubro. Os índices de desnutrição infantil são muito elevados entre os indígenas. A última semana foi muito triste no Congresso Nacional por uma série de medidas que foram tomadas, mas, especialmente neste caso, por causa da PEC 215, que faz a revisão sobre a demarcação das terras indígenas e que é nefasta.
O Brasil deixou no ano passado o Mapa da Fome elaborado pela ONU, o que é muito importante, mas um resultado baseado em estatísticas. É sabido que ainda há pessoas no país que sofrem com a fome. Quantas e quem são essas pessoas, além dos indígenas?
Temos hoje em torno de três milhões de famílias, ou doze milhões de pessoas, que ainda são vulneráveis à fome no Brasil. Indígenas e povos tradicionais fazem parte deste grupo, pela dificuldade de acesso às políticas públicas e por sofrerem ataques muito severos a suas formas de produção. Mas também há pessoas nas cidades que vivenciam a fome. São populações que continuam marginalizadas, em situações muito precárias de sobrevivência, sejam moradores de rua, ou habitantes de cidades pequenas ou médias, também com dificuldades de acesso a políticas públicas e que merecem atenção. É preciso prosseguir no combate à fome e não se contentar com dados estatísticos.
O que possibilitou que o Brasil deixasse o mapa da fome?
A aposta em políticas públicas de enfrentamento à dificuldade de acesso aos alimentos. O país teve um período de crescimento do emprego formal, da renda e de políticas de distribuição de renda, que contribuíram, junto a políticas de segurança alimentar, como o PAA e a política de cisternas, para que esses avanços fossem visíveis.
Por que o livro lança luz sobre as políticas de compras públicas de alimentos, especificamente?
Para enfrentar o problema da fome, foram construídos programas que se tornaram o nascedouro do processo de abastecimento com compras públicas de alimentos. Primeiro, em 2003, o PAA, que obedeceu a uma lógica muito simples: se o Fome Zero exigia mais alimentos para as populações que antes não tinham acesso, alguém tem que produzir. Então, que seja a agricultura familiar. Com isso, um dos problemas da fome começa a se resolver, já que entre esses agricultores familiares também havia situações extremas de fome. Outro ponto importante do PAA foi o fortalecimento da associação entre os agricultores, para que eles tivessem condições de fornecer os alimentos, e a viabilização de uma alimentação mais saudável e identificada com os hábitos locais, a partir do incentivo à produção local. Mais tarde, em 2009, surgiu o PNAE, que na verdade existia desde 1954. Mas com um projeto de lei que construímos no Consea, o PNAE passou a determinar que 30% da alimentação escolar fossem fornecidas pela agricultura familiar, um mercado enorme que se abriu, de 45 milhões de alunos. O objetivo do livro, então, é compartilhar com outros países a experiência do Brasil, fazendo um resgate histórico do processo de compras de alimentos pelo Estado.
Quais países têm se inspirado na experiência brasileira de compras públicas de alimentos?
Muitos países nas Américas e na África, como Bolívia, Venezuela, Equador, Guatemala, Senegal, Mali, Moçambique e, sobretudo, Cabo Verde, que já vem avançando bastante na alimentação escolar inspirada na experiência brasileira. A ideia do livro é ampliar o conhecimento sobre a iniciativa brasileira, mas sabemos que a aplicação dela em outros países precisa observar as especificidades de cada um deles.
Qual o papel da agricultura familiar na segurança alimentar do país hoje?
Em média, ela fornece 70% dos alimentos que são consumidos em todo o Brasil. Mas é preciso ter atenção ao fato de o mercado interno também ter se tornado um negócio atraente para o agronegócio, que tem procurado avançar nesta disputa. Por um lado, com uma prática antiga, a chamada política de integração, por meio da qual as indústrias processadoras compram da agricultura familiar, mas com regras próprias. O uso dos agrotóxicos aí é muito problemático, porque os agricultores familiares se veem obrigados a usar essa tecnologia para vender para essas grandes indústrias. E, por outro lado, o próprio agronegócio tem tomado a iniciativa de produzir e fornecer alimentos para o mercado interno. A vigilância neste sentido deve ser forte. E os incentivos para a agricultura familiar são muito importantes.
Por que a produção de alimentos pelo agronegócio para abastecer o mercado interno é um problema?
Porque o agronegócio tira mercado dos agricultores familiares. O agronegócio já tem acesso farto ao mercado internacional. Por causa das disputas nas áreas rurais entre agronegócio e agricultura familiar, muitos pequenos agricultores acabam migrando para as cidades, em busca de melhores condições de vida, ou ficando muito empobrecidos no campo. Além disso, o agronegócio tem como característica principal um modelo de produção baseado na monocultura e na farta utilização de agrotóxicos, o que tem reflexos na qualidade dos alimentos que chegam para os consumidores finais.
Como está o debate sobre o uso de agrotóxicos no país hoje?
Não estamos bem. Não avançamos no controle de produtos que ainda são vendidos no Brasil e que já estão proibidos em outros países do mundo. O Brasil é o maior importador de agrotóxicos do mundo. É claro que o país tem uma agricultura de grandes dimensões e isso contribui quantitativamente, mas esse dado demonstra também um controle muito frágil sobre a utilização desses insumos químicos. E existe ainda o casamento dos transgênicos com os agrotóxicos, que é a prática de determinadas empresas de produzirem sementes transgênicas e que, teoricamente, só produzirão bem se forem usados pesticidas fabricados por essas mesmas companhias. Isso é um grande problema, já que houve grande expansão dos transgênicos sobre alguns produtos, como milho e soja.
Como garantir o acesso aos produtos da agricultura familiar nas grandes cidades?
O PAA também é usado para garantir estoques estratégicos, que são destinados para consumidores no campo e na cidade. É preciso garantir a preservação do PAA em moldes que, de fato, os alimentos continuem sendo adquiridos da agricultura familiar. O mesmo vale para a alimentação escolar. Por outro lado, iniciativas que coloquem o agricultor em contato mais direto com os consumidores finais precisam ser desenvolvidas e as já existentes, como feiras e mercados populares, precisam ser ampliadas.
Quais são as diferenças entre as populações urbana e rural em termos de segurança alimentar?
São realidades diversas, inclusive em relação aos problemas enfrentados. Na população urbana, praticamente obrigada a adquirir todos os alimentos para se alimentar, os preços dos produtos são um ponto relevante. A capacidade de abastecimento é igualmente relevante, e nós ainda não temos uma política nacional de abastecimento. No campo, as políticas voltadas para o crédito, para a assistência técnica para a agricultura familiar, e para proteger os agricultores da perda de terras para o agronegócio são relevantes, assim como a preservação das políticas já existentes.
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