Para falar sobre fome, precisamos falar sobre Cerrado e os modelos de produção
“O agravamento da insegurança alimentar no Brasil é parte de um processo”. Essa é uma das frases que apresenta o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, lançado em abril, e que revelou o assombroso número de 19 milhões de brasileiros passando fome. O estudo foi conduzido pela Rede Penssan em parceria da ActionAid e de outras organizações.
Curiosamente, esses dados são mais alarmantes quando se está mais próximo da terra e dos cultivos. O inquérito destaca que a insegurança alimentar grave atingiu 12% dos domicílios na área rural, contra 8,5% em área urbana. Ao mesmo tempo, o agronegócio e as monoculturas se expandem e lucram nessas mesmas regiões que hoje são acometidas pela fome. Por que, então, essa população tem acesso tão precário a alimentos e a renda?
Entender essa contradição significa encarar problemas profundos no modo como a sociedade se organiza e promove integração com os vários modos de vida existentes fora do meio urbano. A pesquisa “Cerrado e modos de vida tradicionais no Maranhão, Tocantins e Piauí” propõe esse olhar para a região do Matopiba – região que passa por grandes transformações com aumento exponencial de conversão de terras para produção de grãos e fica localizada no Cerrado brasileiro.
Matopiba é o acrônimo formado pelas iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A pesquisa de campo realizada não cobriu o estado da Bahia, mas discorre sobre dinâmicas socioambientais e conflitos territoriais que perpassam todo o Matopiba, que é hoje a região considerada pelo setor do agronegócio como “a última fronteira agrícola”.
Esse relatório foi desenvolvido pela ActionAid como parte da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, e tem apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos. O objetivo foi aprofundar o entendimento sobre o Cerrado – que é o segundo maior bioma da América do Sul, conhecido também como o “berço das águas” brasileiro e a savana com a maior biodiversidade do planeta – e as múltiplas identidades e modos de vida ali presentes. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, vivem na região pelo menos 506 comunidades quilombolas e 517 comunidades indígenas – dados que certamente são subdimensionados, já que existem muitas comunidades ainda em processo de reconhecimento pelo Estado. De acordo com dados de 2018 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, são 1.126 assentamentos, com mais de 100 mil famílias assentadas com direito de uso da terra para agricultura familiar.
‘Última fronteira agrícola’
O Matopiba é conhecido pelas grandes corporações do agronegócio como a “última fronteira agrícola do Brasil” por se tratar da área de Cerrado com maior remanescente de vegetação nativa. Mesmo em meio à pandemia de Covid-19, o setor comemora o aumento de área de produção, exportação e lucro. No Piauí, por exemplo, em março de 2021, a safra de algodão foi 10% maior que a do mesmo período no ano passado. E há endosso do poder público. Decretos e mudanças nas legislações federais e estaduais, assim como o enfraquecimento de órgãos e instituições de proteção socioambiental, têm colaborado para um aumento da expulsão de povos e comunidades tradicionais, desmatamento, contaminação de rios e destruindo a diversidade de alimentos, sementes e saberes.
Na prática: o avanço das monoculturas encolhe o espaço e as possibilidades de plantação das comunidades tradicionais. O agronegócio tem um efeito devastador sobre a fauna e a flora, promove extensas queimadas, faz uso crescente e descontrolado de agrotóxicos e intensifica conflitos com esses povos que vivem em mais harmonia com o Cerrado. O cultivo de uma grande diversidade de grãos e de raízes que alimentam a população brasileira, como o arroz, o feijão e a mandioca, e de tantos outros frutos e alimentos regionais como a bacaba e o buriti, está cada vez mais encurralado pela monotonia da soja, o grão que tem sua produção mais incentivada na região.
Existem dispositivos legais, na Constituição Brasileira, em decretos e em normativas internacionais, que determinam o respeito às comunidades tradicionais e lhes dão o direito de serem consultados previamente da instalação de qualquer empreendimento que impacte seus modos de vida. Pensar no Cerrado como “espaço vazio” para o avanço das monoculturas ameaça essas populações na medida em que as cercam com plantações que utilizam agrotóxicos, fazendo com que pragas se desloquem para as roças de comunidades, contaminam rios utilizados para consumo de água local, ou até, no limite, expulsam esses povos em conflitos muitas vezes resultantes de grilagens de terra . Essa dinâmica de conflitos no campo é um dos fatores responsáveis pela grave insegurança alimentar em curso, como aponta o inquérito publicado pela Rede Penssan.
Comida de verdade que alimenta comunidades inteiras e gera renda
A equipe da pesquisa visitou o Projeto de Assentamento Alegre, em Riachão, no Maranhão. O grupo é um dos muitos que vivem no Cerrado e lutam para sustentar saberes e cultivos nesses territórios ameaçados pela expansão do agronegócio. Abóbora, mandioca, melancia, feijão, fava, arroz, hortaliças, milho, banana… esses são alguns dos alimentos produzidos pelos assentados.
A comunidade tem 17 anos de história e tem como base de produção a agroecologia, com uma organização coletiva em todas as etapas do trabalho, com mutirões para plantio, colheita, manufatura e comercialização. Anualmente, o PA Alegre produz mais de 40 toneladas de farinha de mandioca, que chega a todas as localidades do entorno. A comercialização desse e de outros produtos é feita no Programa Nacional de Alimentação Escolar, levando comida saudável e local para as escolas da região.
Também visitamos a Comunidade de Ilha Verde, em Babaçulândia, no Tocantins, que contempla 40 famílias ribeirinhas. A localidade é alvo de intensos conflitos de disputas por terra. Não coincidentemente, aumentam as denúncias de queimadas criminosas e invasões causadas por grandes empreendimentos. O caso de Ilha Verde não está isolado: em 2016, o relatório de conflitos da Comissão Pastoral da Terra apontou um crescimento de mais de 300% no número de conflitos registrados no Tocantins.
Impactos da Covid-19
A insegurança alimentar não é a única mazela que se impõe no Cerrado na conjuntura atual da pandemia, que limitou o funcionamento de feiras e comprometeu a renda e a produção de muitas famílias. Outro estudo, conduzido pela ActionAid e pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, observou a evolução dos casos de Covid-19 em dez municípios dos estados do Maranhão, Tocantins e Piauí. A precarização da saúde pública, o agravamento da desigualdade social e todo descaso com os vários modos de vida do Cerrado apontam para uma agressividade do novo coronavírus nessas localidades. Principalmente pela carência de leitos em UTI, de testes e pela alta probabilidade de casos subnotificados.
O estudo realizado indicou que a Covid seguiu os mesmos fluxos de trânsito do agronegócio. No município Formoso do Araguaia, no Tocantins, há uma grande concentração de frigoríficos e de fazendas, e por lá passam inúmeros ônibus vindos de outras regiões, carregados de trabalhadores empregados por essas empresas. A proporção de casos de Covid-19 nessa cidade é maior que a média do estado. No mês de janeiro de 2021, Formoso do Araguaia apresentou percentuais elevados de casos e de mortes por 100 mil habitantes, superando com folga as médias estaduais, indicando que esses estabelecimentos podem ter sido a porta de entrada do vírus na região.
O município de Balsas é o centro do agronegócio no Maranhão, e tem uma grande circulação de pessoas. Os casos de Covid-19 na localidade acompanharam a tendência de crescimento dos casos no estado, ao contrário de municípios menores como Carolina, Loreto e Riachão, que permaneceram quase sem serem atingidos no início da pandemia. A regional de saúde de Balsas atende moradores de 14 municípios, e dispõe de somente 18 leitos de UTI.
Já nos três municípios acompanhados no Piauí (Gilbués, Santa Filomena e Bom Jesus), os moradores se queixam de que nenhum outro procedimento pôde ser realizado nas unidades básicas de saúde, já que todo o atendimento precisou ser revertido para os casos de Covid-19. Em diversas comunidades do estado, a pesquisa observou outra questão que impactou a segurança alimentar de comunidades. O governo do estado, que anualmente oferece sementes aos agricultores familiares, reduziu a entrega desses insumos durante a pandemia. Muitos agricultores precisaram tirar os grãos do consumo próprio para plantar – ou seja, ficaram com menos comida na mesa para a subsistência da família.
ActionAid em ação
A ActionAid, em parceria com organizações locais, realizou ações emergenciais em municípios desses três estados. No Maranhão, mais de 1.300 pessoas foram beneficiadas com a entrega de cestas básicas. No Tocantins e no Piauí, foram distribuídas, respectivamente, 42 e 193 kits com alimentos.
“Esse ato de amor e de humanidade da ActionAid e dos parceiros vai chegar às famílias. É bonito ver, no rosto dessas pessoas, a alegria ao receber o alimento. Cesta básica não resolve, mas ajuda”, diz Altamiran Ribeiro, articulador local da Comissão Pastoral da Terra no Piauí.
A pandemia mostrou uma face mais sombria no Brasil, tanto pelo descontrole na transmissão da doença e pelo número altíssimo de mortes, quanto pelo agravamento da pobreza e da fome. Para Emmanuel Ponte, especialista em Campanhas da ActionAid, “a vulnerabilidade da região do Matopiba é imensa, principalmente pela falta de infraestrutura básica de saúde e de saneamento, e pelas dificuldades de logística e comunicação. Por isso, é importante que sigamos realizando ações de solidariedade e defendendo os direitos de povos e comunidades tradicionais e a conservação do Cerrado”.