Evento no Museu do Amanhã levou a importância do Cerrado para o futuro do Brasil
Na última terça (10), o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, foi uma extensão da savana mais rica em biodiversidade do mundo, o Cerrado. Reunindo representantes de povos tradicionais, o evento “O Cerrado em toda parte”, realizado pela ActionAid em parceria com a Rede Cerrado, discutiu a importância da conservação do bioma, pela perspectiva da proteção da cultura e da sabedoria ancestral das populações que habitam esse território.
No evento, o público pôde se aproximar do que significa viver nessa região, experimentando seus sabores, sua música e sua história, sobretudo pelos relatos das populações que continuam resistindo e afirmando seus modos de vida tradicionais como guardiãs dos recursos naturais.
Atualmente, o Cerrado é o principal território por onde avança o agronegócio no país, sendo devastado mais rápido que a Amazônia. Se o atual ritmo de devastação for mantido, o bioma pode desaparecer até 2030. Ele é conhecido como o berço das águas, pois é nesta região onde nascem as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata. Para se ter ideia, mais de 50% da energia produzida no país é gerada pelas águas do Cerrado. Porém, ele e seus povos tradicionais estão sob ameaça: 52% do bioma já foram devastados.
Avanildo Duque, gestor de Programas e Políticas da ActionAid, resume a importância da realização do evento para o futuro do país: “O amanhã depende de protegermos o máximo a biodiversidade do Cerrado. O amanhã depende da ação dos povos e comunidades tradicionais”. Ele lembrou que a presença dos povos tradicionais nesses territórios contribue para a conservação da fauna e da flora. “Garantir a permanência dessas populações em seus territórios é a forma mais efetiva para barrar o avanço do desmatamento e a manutenção da vegetação e da água”, disse.
Ouvir o Cerrado
Durante a manhã, o palco do auditório principal foi ocupado por representantes dos povos quilombolas, das quebradeiras de coco babaçu e dos geraizeiros (identidade tradicional da região das Gerais, no Norte de Minas) que, mediados pela jornalista Flavia Oliveira, dialogaram sobre as resistências necessárias frente ao crescimento da exploração do bioma.
Segundo Fátima Batista Barros, da Articulação Nacional dos Quilombolas e integrante da Campanha em Defesa do Cerrado, a relação que os quilombolas têm com o Cerrado é de pertencimento, diferentemente do modelo de exploração desenvolvido pelo agronegócio que cresce na região.
“Nós temos feito a resistência, o nível de violência é muito grande contra os povos do Cerrado”, relatou. A liderança quilombola contou que sua comunidade está levando anos com um processo na justiça para conseguir o título definitivo da área que ocupam.
“Nós levamos anos em processos lutando para provar o nosso direito ancestral que temos de estar no território, meu avô, minha mãe, meus irmãos nasceram na Ilha de São Vicente e ainda sim enfrentamos um processo jurídico e um fazendeiro conseguiu retirar a comunidade uma vez. Mas nós abrimos um processo para comprovar nossa ancestralidade”, explicou.
Para Fátima, a necessidade de as comunidades terem que provar sua identidade enquanto comunidade tradicional é de violência simbólica muito grande. “Um órgão público ter que dizer que nós somos quem nós somos é uma violência, eu sempre soube da minha origem, eu nunca precisei de nenhum papel para dizer quem eu sou.”
Maria do Socorro, coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e coordenadora geral da Rede Cerrado, lembrou que quem de fato está conservando as águas do Cerrado são justamente as comunidades ameaçadas. E ela afirmou que uma forma de ajudar essas comunidades é “colocando a agroecologia na sacola, que não usa veneno, não desmata, vamos incentivar o nosso povo a comprar esses produtos.”
Samuel Leite Caetano, representante dos povos geraizeiros e coordenador de projeto do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM) – que integra da Rede Cerrado, é representante dos povos geraizeiros, vive desde muito cedo a resistência pela conservação do bioma. “O Cerrado nos ensina, às vezes ele desaparece para soja, pecuária, eucalipto, mas basta retirar essa forma agressiva de intervenção do bioma que ele resurge, as raízes são muito forte. É extremamente resistente, como os povos que ali habitam.”
Ele afirma que a agricultura desenvolvida pelos povos tradicionais do Cerrado é desenvolvida em um processo em equilíbrio com a natureza e que os povos e que a luta dos geraizeiros pela retomada das terras é para reverter o processo de degradação do território. “Eu não estou desanimado não, estou igual ao Cerrado, disposto a ressurgir quando for preciso. Tenho certeza de que essa resiliência vai garantir bons frutos.”
Os grandes conflitos agrários existentess na região do Cerrado, principalmente na área conhecida como MATOPIBA, são ameaças para diferentes povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Mas também ameaçam as águas do Cerrado, poluindo com agrotóxico, ou construindo barragens e captando água em excesso para as grandes áreas de monocultura.
Maria Emília Pacheco, assessora da Fase, reafirmou a importância de levar ao debate um bioma tão importante e pouco conhecido como o Cerrado, que vem sendo mais devastado do que a Amazônia, porém não recebe a mesma atenção no debate público. “A vida no Brasil depende muito da vida no Cerrado. Falar do Cerrado é também falar sobre o ciclo das águas e sua biodiversidade, mas, sobretudo, falar sobre a história de seus povos, já que eles não somente guardam a natureza, mas transformam em permanência a própria natureza.”
Ela lembrou da importância de questionarmos o discurso vigente que fala que o agronegócio nos alimenta. “Há um território do capital, imposto e criado pelo interesse do Estado, como o MATOPIBA, que alega que o desenvolvimento se dá com aumento da produção, mas produção para quem? Devemos questionar: quem nos alimentará?”, explicou se referindo ao fato de as grandes monoculturas que ocupam áreas que antes eram mata nativa do Cerrado serem, em sua imensa maioria, soja ou milho transgênico, que são exportados para a cadeia da pecuária em países da Europa, Estados Unidos e China. Em alguns casos, as áreas de Cerrado viram plantações de eucalipto ou pastagem para criação de gado.
A jornalista Flávia Oliveira, que mediou o debate, lembrou que para esses povos e comunidades, incluindo agricultores familiares, o desenvolvimento é um conceito diferente. “O ofício, o trabalho e a renda, passam pelo conhecimento e saberes que compõem o Cerrado e toda essa riqueza histórica e antropológica”, disse.
Ao final da roda de conversa o público acompanhou uma homenagem a dona Dijé, importante liderança das quebradeirad de coco babaçu que faleceu no mês passado, após tomar posse no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais. As Encantadeiras, grupo musical das quebradeiras de coco babaçu, fizeram uma apresentação para encerrar a atividade.
Ver o Cerrado
Durante o período da tarde, foram exibidos os documentários Seu Churrasco tem soja?, de Thomas Bauer; a série de curta metragem Guardiões do Cerrado, de Fábio Erdos; e o longa Sertão Velho Cerrado, de André D’Elia. Após a exibição os diretores participaram de um debate com o público e relataram as dificuldades no processo de produção, principalmente nos casos em que envolviam violência com as comunidades.
Sentir o Cerrado
Durante todo o dia, as crianças puderam participar de atividades pedagógicas, incluindo contação de histórias, oficinas e exposições. Os especialistas do Museu de Mineralogia Aitiara (MuMA) apresentaram a formação do aquífero Guarani, uma das reservas hídricas mais importantes do mundo localizada no Cerrado, e demonstraram o funcionamento do arenito Botucatu, rocha porosa do aquífero que absorve água.
A artista plástica Márcia Porto conduziu oficinas de pintura coletiva com pigmentos terrosos a partir de informações sobre o Cerrado. Ao final da oficina, os participantes montaram um painel com suas pinturas. As Encantadeiras, grupo musical de quebradeiras de coco babaçu, fizeram uma apresentação sobre sua defesa das palmeiras que só crescem na região do Cerrado, com cantos sobre seu trabalho na quebra do coco da palmeira, meio de vida dessa população tradicional.
Ana Carolina Fagundes Sampaio, 14, e Vitória Francisca, 13, moradoras da Maré e apoiadas pelo projeto da ActionAid em parceria com a Redes da Maré, acompanharam atentas as atividades pedagógicas. Puderam conhecer um pouco mais sobre a formação das águas, sentir as cores do Cerrado e experimentar um pouco das culturas que resistem no bioma. “A gente não conhecia essa realidade. As histórias das quebradeiras de coco, para nós, foi o mais interessante porque elas mostraram para a gente como elas vivem”, disse Ana Carolina.