Algumas observações sobre o relatório Luz da Agenda 2030, escrito por cerca de 40 movimentos sociais e ambientais do Brasil para ser entregue à reunião do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que está acontecendo em Nova York até esta quarta-feira (19). O cerne do estudo, como foi divulgado no dia 9 de julho pelo jornal “O Globo”, é a vergonhosa conclusão de que o Brasil voltou a ser incluído no Mapa Mundial da Fome, elaborado pela ONU. Em 2014, sob o mandato de Dilma Roussef e depois da implantação de diversos programas sociais pelo ex-presidente Lula, o país tinha conseguido manter menos de 5% de sua população em insegurança alimentar, requisito exigido pelas Nações Unidas para deixar de fazer parte da lista.

 

Sim, estar de novo nesse rol já é vergonhoso o bastante, mas isso ainda não é tudo. Uma leitura mais detalhada do relatório põe lupa sobre o retrocesso socioeconômico e ambiental que estamos vivendo, sobretudo nos últimos dois anos. O Sistema Único de Saúde, implantado constitucionalmente em 1988, vem sendo esvaziado por ineficiência administrativa e política “em benefício de empresas financeiras da saúde e em detrimento dos direitos humanos”, denunciam os responsáveis pelo estudo. Isso resulta em recrudescimento de algumas doenças ou faz com que não desapareçam outras, como era de se esperar.

 

“A situação da tuberculose continua grave. Apesar de sua redução ao longo do tempo, algumas regiões ainda apresentam alto índice de infecção; é notável a variação de incidência segundo a raça e o agravamento dos casos associados a outras doenças, sobretudo a AIDS. A malária, apesar de ter sua incidência reduzida, continua com grandes bolsões de foco e demanda manutenção no combate para erradicar o vetor e o vírus das regiões mais afetadas”, diz o texto do relatório, assinado por Fase, Ibase, Inesc, ActionAid, Abong, só para citar as organizações mais conhecidas.

 

As Nações Unidas criaram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para todos os países-membros, e determinou que eles deverão ser alcançados até 2030. No quesito saúde, portanto, também vamos ter problemas para chegar ao objetivo, que é “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”.

 

Ainda assim, para este ano o governo destinará 4%, não mais, para financiar o SUS. Doenças como a zika, a chinkungunya e a dengue são novos desafios, que mereceriam também investimento maior na Ciência para deter a tempo as epidemias, aparentemente sazonais. No entanto, segundo o que disse o presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, em evento recente realizado pelo Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, não há apoio também para os cientistas.

 

Outro dado que não nos deixa em boa posição é com relação aos cuidados com as mulheres. Diz o Objetivo 5 de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Diz o relatório feito por especialistas sobre a situação de gênero no Brasil:

 

“O Brasil ocupa a quinta posição global em número de homicídios de mulheres, é o quarto lugar em números absolutos de mulheres casadas até a idade de 15 anos e é o que mais mata mulheres transexuais e travestis. A violência de gênero é naturalizada na sociedade, que recorrentemente atribui às mulheres e meninas a responsabilidade pela violência sofrida. Meninas de 0 a 17 anos correspondem a 70% das vítimas de estupro. A imensa maioria dos perpetradores são membros da própria família, amigos e conhecidos”.

 

São 54 os países membros do Conselho Econômico e Social (Ecosoc, na sigla em inglês), que funciona como uma plataforma para debate sobre desenvolvimento sustentável, envolvendo questões sociais, econômicas e ambientais, e implementação de metas internacionais de desenvolvimento. A Carta das Nações Unidas estabeleceu o Ecosoc em 1945 como um dos seis principais órgãos. Resta aos brasileiros, se preferirem, assumir o discurso de que “não estamos sozinhos nesse retrocesso”. Sim, porque o relatório divulgado pela organização internacional no dia da abertura do encontro em Nova York, dia 10 de julho, embora comemore alguns avanços nas questões sociais e econômicas mundo afora, também faz duras críticas às questões que não tiveram nenhum avanço.

 

A pobreza, por exemplo, ainda atinge 767 milhões de pessoas em todo o mundo, que em 2013, último dado registrado pela ONU, viviam com menos de US$ 1,90 por dia. Há uma questão crucial ainda nessa contagem porque, segundo o estudo, “muitos dos extremos pobres agora estão concentrados em regiões onde configurações frágeis, conflitos e outros problemas sistêmicos tornam mais difíceis as intervenções efetivas. Mas também há muitos que vivem em bolsas de pobreza em economias de outra forma robustas, o que indica que elas podem ser especialmente difíceis de alcançar”.

 

A desigualdade de gênero continua a persistir em todo o mundo, privando mulheres e meninas do seu direito e das oportunidades básicas. A luta contra a desnutrição infantil fez progressos, mas ainda existem cerca de 155 milhões de crianças menores de 5 anos no mundo que foram atrofiadas e, globalmente, 11% da população mundial - 793 milhões de pessoas - ainda sofrem de fome.

 

“Para garantir que o desenvolvimento sustentável seja realizado por todas as pessoas e para todas as pessoas em todos os lugares, é necessária uma parceria global revitalizada e reforçada que reúne todas as partes interessadas e mobilize todos os recursos disponíveis”, lembra o relatório das Nações Unidas. No entanto,  a ajuda bilateral aos países menos desenvolvidos caiu 3,9% em termos reais a partir de 2015. Mas, no ano passado, a Alemanha juntou-se a outros cinco países - Dinamarca, Luxemburgo, Noruega, Suécia e Reino Unido - no cumprimento do objetivo de manter essa ajuda em cerca de 0,7% de sua renda nacional bruta.

 

Avanços e retrocessos fazem parte do desenvolvimento do mundo. Retrocessos e retrocessos estão fazendo parte da vida dos brasileiros nesses dois últimos anos. Noves fora, zero. Nem gosto de me comparar aos piores, nem gosto de servir como mau exemplo.

 

Um dos órgãos responsáveis pelo estudo que está sendo agora divulgado nas Nações Unidas, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), escreveu em seu site que a questão de fundo desse retrocesso “não diz respeito à incapacidade das políticas públicas e das instituições do poder executivo atuarem para cumprir os ODS”.

 

“A questão é de ordem política e orçamentária, e diz respeito à profunda falta de compromisso político do atual governo com o adequado financiamento para o desenvolvimento por meio da execução das políticas públicas que estão prometidas no Plano Plurianual (PPA) e também nos ODS. A falta de compromisso, por sua vez, é uma expressão das escolhas de políticas econômica e fiscal e de desmonte do Estado democrático de direito”.

 

É o que estamos vivendo.