Libéria e Mianmar

Hoje no poder, vencedoras do Nobel da Paz são questionadas

Ellen Johnson Sirleaf e Aung San Suu Kyi vivem percalços políticos e sofrem críticas

por Marina Gonçalves e Lucas Moretzsohn

Ellen Johnson Sirleaf e Aung San Suu Kyi: do Nobel aos questionamentos - Montagem / Reuters

RIO - Detentoras do Prêmio Nobel da Paz por seus esforços contra abusos e a favor de sociedades mais igualitárias, Ellen Johnson Sirleaf e Aung San Suu Kyi tornaram-se ainda mais expostas às críticas após chegarem ao poder. Enquanto a presidente da Libéria não conseguiu trazer mais avanços políticos para as mulheres no país africano, a líder de fato de Mianmar vê a comunidade internacional questionar sua influência pela falta de ações concretas e acusações de abusos que levaram à crise humanitária da minoria muçulmana rohingya. Entenda o que acontece com ambas.

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LIBÉRIA: Simbolismo, mas sem avanços para mulheres

Por Marina Gonçalves
Ellen Johnson Sirleaf fala durante coletiva em Monróvia - Thierry Gouegnon / REUTERS

Foram doze anos de paz, em um país que saía de uma guerra com um saldo de mais de 250 mil mortos. Seu governo construiu estradas, escolas e hospitais e foi capaz de convencer a comunidade internacional a cancelar cerca de US$ 5 bilhões da dívida da guerra. Não bastasse todos esses feitos, Ellen Johnson Sirleaf — Prêmio Nobel da Paz em 2011 — foi a primeira mulher a ser eleita no continente africano. Na área econômica, a “dama de ferro africana” conseguiu atrair investidores estrangeiros, entre eles o maior produtor mundial de aço. E ainda foi responsável pela reforma do setor dos diamantes na Libéria, que teve um triste papel no financiamento da guerra civil no país. Mas, se é venerada pela comunidade internacional, para muitos liberianos a lista de feitos da “Ma Ellen” pode ser tão grande quanto a de fracassos: Ellen não foi capaz de lutar contra a corrupção, nem de conter o maior surto de Ébola do país, que continua a ser um dos países mais pobres do mundo, e muitos ainda a acusam de nepotismo, já que dois dos seus filhos receberam postos no Banco Central. Pior: algumas mulheres sentem que sua Presidência teve significado muito mais simbólico do que prático.

— Simbolicamente para a liderança feminina e a participação política das mulheres, a boa vontade política e a atenção global da sua Presidência histórica trouxeram muita atenção à Libéria, ajudando a elevar questões e desafios do nível nacional para o internacional — explicou ao GLOBO Lakshmi Subramani, coordenadora-executiva da ActionAid no país. — O desafio é que alguns desses ganhos não foram apoiados por ações legais e sustentáveis, incluindo aquelas que poderiam ter garantido o avanço dos direitos das mulheres no que diz respeito à terra, contra a violência doméstica e paridade de gênero.

‘Fez coisas muitas boas, mas poderia ter feito muito mais em termos de se juntar a esforços consolidados voltados a unificar o movimento feminino’

- Facia Harris ativista ex-ONU

O simbolismo de sua Presidência é quase consenso: ao ser eleita, Sirleaf enviou uma forte mensagem de participação e liderança política das mulheres no continente. Se durante muitos anos, elas desempenharam um papel fundamental de liderança em diferentes setores, dificilmente eram reconhecidas, lembra a ativista feminista Facia Harris, que trabalhou por anos na Missão das Nações Unidas na Libéria.

— A primeira presidência feminina da África é uma realização e aceitação do despertar, se eu posso chamar assim, de que as mulheres podem liderar a posição mais alta em qualquer setor. Isso inspirou mais mulheres a continuar a aspirar a cargos políticos e públicos, em uma sociedade altamente patriarcal como muitas outras em todo o mundo — disse ao GLOBO.

Em 2011, Sirleaf foi agraciada com o Nobel da Paz pelo seu empenho em prol dos direitos e da segurança das mulheres no país. Mas, politicamente, seus dois mandatos não trouxeram maior participação delas na política: nas eleições regionais deste ano, apenas 163 dos 1.026 candidatos (16%) aprovados eram mulheres — um aumento pouco significativo se comparado a 2005 e 2011, quando elas representaram 14% e 11%, respectivamente. “Nos últimos 12 anos, ela não fez quase nada para posicionar as mulheres favoravelmente a ganhar votos”, destacou Robtel Neajai Pailey, em artigo publicado na “Al Jazeera”. “Em 2009, quando políticas pediram a Sirleaf para apoiar uma mulher do partido para substituir uma senadora morta, ela fez campanha para um homem”.

— Ela assumiu um sistema quebrado quando as instituições nacionais não funcionavam. Ela fez coisas muitas boas, mas poderia ter feito muito mais em termos de se juntar a esforços consolidados voltados a unificar o movimento feminino e tomar medidas diretas para aumentar a participação política das mulheres — observou Facia.

Embora uma emenda de lei de 2014 encoraje os partidos políticos a aumentarem a representação feminina em cargos de liderança, o próprio Partido da Unidade não seguiu a recomendação. Sirleaf apoiou o ex-jogador de futebol, George Weah, que disputará o segundo-turno com o vice-presidente, Joseph Nyumah Boakaie — a única mulher no páreo entre os 20 candidatos era a ativista de direitos humanos, MacDellaa Cooper.

— Os ganhos simbólicos agora podem ser revertidos com a reação observada durante as eleições, especialmente com a retórica do próprio partido de Sirleaf, um impulso para usar suaPresidência como um chamado para recuar contra a liderança das mulheres, ancorando os desapontamentos dos cidadãos com ela — alertou Subramani.

Sirleaf cumprimenta o jogador Jay Jay Okocha diante do líder opositor George Weah, que foi o maior ídolo do futebol da Libéria - AFP

Entre analistas, a pacificação e o crescimento econômico são lembrados como os principais feitos da primeira presidente no continente. O analista político Ibrahim Al-bakri Nyei ressaltou ainda que Sirleaf foi eleita em um momento de transição crítico entre a guerra e a paz. Segundo Facia, a própria presidente admitiu que a luta contra a corrupção continua a ser um grande desafio para seu governo.

— Ela enfrentou grandes desafios. O fato de ser a primeira mulher eleita na África tem um grande significado, mas sua maior importância foi trazer a paz e garantir que as pessoas sobrevivessem. Ser mulher foi um elemento a mais — disse Nyei ao GLOBO. — A expectativa era de que ela garantisse segurança. Mas seu governo continuou marcado por uma corrupção que impede o desenvolvimento em outras áreas.

Em outubro, Weah venceu o primeiro turno com 38,4% dos votos contra 28,8% de Boakai. Mas o Partido da Liberdade, do candidato que ficou em terceiro lugar, Charles Brumskine, pediu à Comissão Eleitoral uma repetição do escrutínio, adiando indefinidamente o segundo turno.

— Os atrasos no processo empurram o país para uma potencial crise constitucional, uma vez que as eleições têm uma linha do tempo e não foram feitas previsões na Constituição para tais atrasos (o próximo presidente será inaugurado até janeiro de 2018) — explicou Subramani.

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MIANMAR: ‘Dama de Yangon’ em xeque por rohingyas

Por Lucas Moretzsohn
Líder de fato de Mianmar, Aung San Suu Kyi faz discurso em Naypyitaw - Aung Shine Oo / AP

Em novembro, completou-se sete anos desde que Aung San Suu Kyi, líder de fato de Mianmar e vencedora do Prêmio Nobel da Paz (1991) deixou a prisão domiciliar, que cumpriu por um total de 15 anos a mando dos militares que governaram o país por décadas. Em liberdade, continuou a carreira política até o atual cargo de Conselheira de Estado em meio a um processo delicado de transição política, ainda em curso, para a democracia. No entanto, ela certamente não contava que, em 2017, uma crise humanitária centrada na minoria rohingya colocaria em questão todo seu passado em defesa de direitos humanos e ideais democráticos, que a fez receber a maior honraria em nome da paz.

A junta militar no poder em Mianmar tem sido repreendida internacionalmente pela truculência contra o grupo étnico no estado de Rakhine, no Norte. Desde agosto, mais de 620 mil rohingyas abandonaram Mianmar para Bangladesh a fim de escapar da violência do Exército birmanês. A ação das forças estatais começou após ataques do Exército da Salvação Rohingya de Arakan (Arsa) contra postos policiais oficiais. A resposta militar veio através de assassinatos em massa, estupros e incêndios criminosos. Muitos críticos, inclusive representantes da ONU, chegaram a acusar um plano de "limpeza étnica", o que a junta militar nega. Diante de tamanha atrocidade do governo, parte da responsabilidade recaiu sobre Suu Kyi, que até hoje não tomou uma posição firme em defesa dos rohingyas.

Muçulmanos sunitas, os rohingyas são um povo sem Estado. Falam um dialeto de origem bengalesa utilizado no Sudeste de Bangladesh, de onde são originários. O grupo vive há séculos em Mianmar, mas não é reconhecido: tem a cidadania negada e foge constantemente, deparando-se com condições precárias em campos de refugiados.

Apesar de atuar como uma primeira-ministra, Suu Kyi tem poderes limitados no governo. Ela não foi eleita presidente em 2015, mesmo com a vitória eleitoral de seu partido, a Liga Nacional pela Democracia. A Constituição de 2008 impede que ela exerça o cargo por ter filhos e marido estrangeiros. Para contornar isso, criaram o cargo de Conselheira de Estado, o que não lhe confere, contudo, controle sobre os militares, segundo especialistas. Apesar do poder limitado, organizações de direitos humanos e autoridades internacionais condenam a decisão de não usar sua influência política.

— Ela é a líder do maior partido e do Parlamento. Não está no controle do Exército ou da polícia, apenas controla forças civis que não detêm armas. — esclarece Brad Adams, diretor-executivo da Human Rights Watch para Ásia em entrevista ao GLOBO. — Por outro lado, ela é a figura política mais popular do país. Tem o poder de mobilizar seus apoiadores a se opor ao que tem sido feito. E falhou em mostrar qualquer liderança — pondera.

Refugiados rohingya esperam para cruzar o rio Naf de Mianmar para Bangladesh - FRED DUFOUR / AFP

O silêncio de Suu Kyi é uma incógnita, mas analistas especulam motivos por trás. Segundo Matthew Walton, pesquisador e diretor do Programa de Estudos Birmaneses Modernos da Universidade de Oxford, talvez seja uma estratégia para não contrariar duramente os militares a ponto de se prejudicar na política:

— Ela pode estar sendo cautelosa por razões eleitorais porque acredita que é a única chance de continuar no poder e terminar transições democráticas, o que significa eventualmente conquistar um governo civil. Caso seja isso, penso que é improvável, dada a resistência militar em perder seu papel político, e também insensível, já que significa sacrificar os rohingyas por uma transição mais ampla — avalia.

Walton aponta que, ainda que o poder de Suu Kyi seja restrito, nada acontece no governo sem sua aprovação. Desde que não intervenha nos poderes constitucionais dos militares, "ela pode virtualmente fazer o que quiser":

— Ela poderia lançar investigações independentes sobre os supostos abusos. Apenas reconhecer que a violência de fato acontece em larga escala poderia fazer uma diferença e desafiar as pessoas no país a revisar suas posições, mesmo que ela resista em chamar de "limpeza étnica".

PERDA DE TÍTULOS E PRÊMIOS

O peso da crise humanitária acertou em cheio o ativismo da líder de fato. Honrarias concedidas a ela foram colocadas em xeque pela falta de posicionamento. Desde o início do êxodo étnico, uma petição online assinada por mais de 430 mil pessoas exige que Suu Kyi perca seu Prêmio Nobel da Paz. O Instituto Nobel, no entanto, já indicou que as regras não permitem a revogação do título. Em novembro, a cidade de Oxford, onde morou na Inglaterra, retirou o prêmio de direitos humanos conferido à Conselheira em 1997. E mais: alunos da faculdade de St. Hugh's, que ela frequentou na Universidade de Oxford, votaram para remover seu nome de uma sala comunal do campus.

— Muitos se decepcionaram. Ela falava de direitos humanos como seu principal princípio quando estava sob prisão domiciliar. Esperava-se que seguisse isso, mesmo com poder limitado — sustenta Adams.

Papa Francisco fala com líder de fato de Mianmar, Aung San Suu Kyi, durante visita oficial - MAX ROSSI / AFP

Já Walton acredita que retirar esses títulos não tem a ver com os rohingya, mas sim com instituições ocidentais e indivíduos tentando se sentir melhor quanto às formas com que usaram a imagem Suu Kyi ao longo dos anos.

— Soa falso, e também é contraproducente. Se quisermos de fato ver essa situação mudar para melhor, será preciso um engajamento a longo prazo com uma série de agentes políticos e religiosos diferentes em Mianmar. Não podemos fazer isso se desligarmos canais de comunicação e relações produtivas, às vezes críticas, já existentes e espaços de diálogo — aponta o pesquisador.

Para os dois analistas, a controvérsia em torno de Suu Kyi não é suficiente para que o Instituto Nobel reveja a tendência de condecorar políticos, já que o prêmio tem função de incentivar diálogos de paz.

— Qual é a diferença em dar o prêmio a pessoas que poderiam legitimamente ser vistas como criminosos de guerra, e depois concedê-lo a pessoas que são ícones da paz em um momento, mas poderiam mudar uma vez no poder? — questiona Walton. — É sempre um risco e não acho que levam em conta. Eles deixaram claro que (o prêmio) é para os que fizeram algo até o momento em que o receberam.

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